POR RAFAEL MORO MARTINS
“Uma coisa é acusar de caixa dois, outra é acusar de corrupção”, explicou, em abril, a jornalistas, um didático Gilmar Mendes, recém-chegado a Lisboa para participar de um evento organizado pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), do qual é sócio. A declaração – como tantas outras proferidas pelo ministro do Supremo Tribunal Federal – repercutiu como uma bomba, sobretudo pela proximidade de Mendes com políticos de alta plumagem enredados na Lava Jato, entre eles o presidente Michel Temer, que o recebe corriqueiramente no Palácio do Jaburu, muitas vezes fora da agenda.
Os laços de Mendes com a classe política não terminam no convívio pessoal. Uma empresa do ministro também recebe apoios financeiros dos cofres públicos – por meio de patrocínios – para realizar eventos. Mendes estava na capital portuguesa com despesas bancadas, em boa parte, por Itaipu, estatal pertencente aos governos do Brasil e do Paraguai.
A hidrelétrica destinou 250 mil reais ao quinto Seminário Luso-Brasileiro de Direito, realizado entre 18 e 20 de abril, pela empresa da qual Gilmar Mendes é sócio. O evento teve como convidados o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o prefeito paulistano João Doria Jr. (que jurou, então, não ser candidato “nem a governador”), o juiz federal João Pedro Gebran Neto – da turma que julga os recursos da Lava Jato em Porto Alegre –, o ministro da Saúde, Ricardo Barros, o senador tucano Antonio Anastasia e o deputado petista Arlindo Chinaglia.
Também esteve presente uma fatia representativa da alta patente jurídica do país: os ministros João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça – atualmente corregedor nacional do Conselho Nacional de Justiça –, Benjamin Zymler, do Tribunal de Contas da União, e Dias Toffoli, do Supremo. Além, é claro, de Gilmar Mendes.
Apenas para os encontros do instituto, Itaipu entregou 900 mil reais a partir 2014 – dos quais 670 mil reais no ano passado e neste. Desde 2016, todos os eventos jurídicos que Itaipu patrocinou receberam 4,9 milhões de reais. Quer dizer: o instituto ficou com 13,6% do total, perdendo apenas para a Associação de Juízes Federais, campeã de patrocínios recebidos. Em maio, o jornal Folha de S.Paulo publicou que os patrocínios federais à empresa de Mendes somavam, no total, 2,64 milhões de reais desde 2009 – o que dá ideia do volume do dinheiro que irriga o IDP desde Itaipu.
Até pouco tempo atrás, os patrocínios a eventos jurídicos eram modestos, quase escondidos em meio a gastos anuais como bancar o Natal das Cataratas. Neste ano, no entanto, os patrocínios à mesa redonda “Arbitragem e Transação em Matéria Tributária” e ao “Seminário de Verão de Coimbra” – dois eventos jurídicos – entraram na lista dos dez maiores de Itaipu – receberam 300 mil reais cada, situação inédita desde 2008.
Entre 2008 e 2017, o valor médio entregue por Itaipu a cada um dos eventos que patrocina em qualquer área subiu 96%. São 3 249 no total. O dinheiro destinado, em média, apenas aos patrocínios relacionados ao direito subiu bem mais: 334,7% para 243 eventos.
Os patrocínios da estatal a uma empresa da qual um ministro do Supremo é sócio são a parte mais visível da atuação de Itaipu na área jurídica. A resposta a um pedido feito via Lei de Acesso à Informação revelou que os 2,1 milhões de reais destinados pela hidrelétrica este ano somente a eventos jurídicos correspondem a 18,77% do total. Em 2008, a fatia aos eventos da área jurídica era de apenas 1,46% – um aumento de 3 378% em menos de dez anos.
Com sede em Foz do Iguaçu, extremo oeste do Paraná, protegida dos olhos da imprensa e até mesmo dos órgãos de fiscalização federal – apenas em 2015 o Tribunal de Contas da União decidiu iniciar uma fiscalização “efetiva e direta” sobre as contas da empresa, que, graças ao acordo binacional que a criou, não é alcançada por parte da legislação de controle brasileira – Itaipu vem se tornando, nos últimos dois anos, uma generosa patrocinadora de eventos como o de Gilmar Mendes em Portugal.
O interesse de Itaipu em patrocinar eventos jurídicos começou a subir, consistentemente, a partir de 2011. Em fins de dezembro daquele ano, um novo diretor assumiu o cargo jurídico da estatal, Cezar Ziliotto – único dos nomeados pelo governo brasileiro, e que foi poupado na dança das cadeiras promovida por Temer em março passado. “Vários ministros do STF e do STJ gostam dele”, contou-me um influente advogado curitibano. Procurado, ele respondeu por meio da assessoria: “A manutenção do diretor jurídico no cargo se deve a diversos fatores – o bom desempenho, o apoio do atual diretor-geral brasileiro para que ele permanecesse, a indicação da Eletrobras nesse sentido e, finalmente, pela decisão do presidente da República.”
Uma norma do Conselho Nacional de Justiça, de 2013, definiu que os magistrados só podem participar de eventos jurídicos patrocinados por empresas “na condição de palestrante, conferencista, debatedor, moderador ou presidente da mesa”. “Nessa condição”, prossegue a decisão, “o magistrado poderá ter as despesas de hospedagem e passagem pagas pela organização do evento.”
Outra decisão do conselho, também de 2013 – à época presidido pelo ministro Joaquim Barbosa – estipulou que empresas públicas como Itaipu podem arcar, no máximo, com 30% do financiamento de eventos como o promovido pelo IDP em Lisboa. No cartaz do encontro, Itaipu ocupa lugar de destaque entre os patrocinadores. É, também, a única empresa pública a colocar dinheiro diretamente no evento, custeado em conjunto pela Fecomércio do Rio de Janeiro e por uma associação que reúne empresas públicas estaduais de saneamento básico.
Itaipu também ajudou o instituto a bancar outros eventos de grande porte, como outras duas edições do Seminário Luso-Brasileiro, em 2015 e no ano passado, e um seminário que comemorou os 70 anos do Tribunal Superior do Trabalho.
Procurado para que comentasse os patrocínios de Itaipu e o eventual constrangimento que eles poderiam causar a Gilmar Mendes, o IDP respondeu, por escrito: “Não existe limitação legal ou ética em uma empresa pública patrocinar eventos acadêmicos. Da mesma forma que revistas como a piauí não se sentem impedidas de buscar patrocínios para os eventos que promovem, ou para anúncios publicitários de empresas públicas ou privadas que precisarão denunciar em suas páginas, quando envolvidas em fatos que os leitores esperam ver publicados com absoluta isenção.”
Diz, ainda, a nota: “Assim, em ambos os casos, não há qualquer conflito de interesse. Um evento acadêmico é campo de debate de ideias para a busca de soluções, do aprimoramento das instituições, não é uma banca para a troca de favores, nem para a Imprensa, nem para o IDP. Os valores contratados são absolutamente proporcionais à dimensão dos eventos que apoiaram e ao retorno obtido pelos patrocinadores. Além disso, cabe ressaltar que o IDP possui gestão profissional e os sócios não têm qualquer ingerência na administração da instituição.”
No e-mail que enviei, pedi ao instituto que informasse qual o faturamento anual com patrocínios, e que elencasse quem são seus maiores contribuintes. Não obtive resposta.
Itaipu, via assessoria de imprensa, informou que “Não há qualquer preferência para a concessão de patrocínios a eventos acadêmicos promovidos pelo Instituto Brasiliense de Direito Público.”
Em meados de agosto, o Supremo Tribunal Federal aprovou a lista tríplice com os advogados que irão disputar uma vaga aberta no Tribunal Superior Eleitoral, presidido atualmente por Gilmar Mendes. Carlos Bastide Horbach, Marilda de Paula Silveira e Fábio Lima Quintas têm algo em comum: são todos professores do Instituto Brasiliense de Direito Público, do qual Mendes é sócio.
No último dia 21, o Ministério de Minas e Energia anunciou a intenção de privatizar a Eletrobras, principal estatal de energia elétrica do governo federal, à qual Itaipu é subordinada. O mercado financeiro reagiu com a euforia habitual: em um dia, o valor de mercado da Eletrobras subiu 49%. O governo federal apressou-se a desmentir a privatização: Itaipu fica.