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Artigo Quarta-feira, 28 de Maio de 2025, 09:07 - A | A

28 de Maio de 2025, 09h:07 - A | A

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Cuidamos de bonecos, ignoramos pessoas; a sociedade do afeto artificial

Cuidamos de bonecos como quem encontra alívio diante do fracasso dos vínculos humanos



Elas dormem em carrinhos, ganham nome, certidão de nascimento, roupinhas lavadas com amaciante. São embaladas com uma delicadeza que, muitas vezes, falta aos bebês reais. Não choram. Não incomodam. Não rejeitam. Os bebês reborn, réplicas hiper-realistas de recém-nascidos, tornaram-se um fenômeno mundial. Estão nas casas, nas redes sociais, nos shoppings, nas reportagens. Mas o que essa febre silenciosa está tentando nos dizer?

Sociedade do afeto artificial não quer laços reais, quer relações obedientes, sem riscos, sem dor e sem vida.

A princípio, parece inofensivo, um hobby, uma forma de arte, um consolo para mulheres que perderam filhos ou não puderam tê-los. E de fato foi assim que os primeiros bebês reborn surgiram nos anos de 1990, como peças artesanais destinadas a colecionadores ou a um uso terapêutico em casos específicos de luto. O que é novo hoje não é o boneco em si, mas o tipo de relação que se estabelece com ele. O reborn deixou de ser apenas um objeto simbólico para se tornar protagonista de vínculos cotidianos.

Cuidamos de bonecos como quem encontra alívio diante do fracasso dos vínculos humanos. Em vez de enfrentarmos o desafio da alteridade, preferimos a conveniência do afeto artificial, onde não há imprevistos, nem dor, nem a necessidade de escutar o outro.

O paradoxo se intensifica, enquanto investimos tempo, dinheiro e afeto em um boneco, seguimos incapazes de oferecer o mínimo de atenção a pessoas reais. O paradoxo se intensifica: cuidamos com esmero de bonecos, mas muitas vezes cruzamos a rua para não encarar um morador em situação de rua, desviamos o olhar de uma criança que pede ajuda no semáforo e nem percebemos que, muitas vezes, aquela mão pequena estendida não pede apenas moedas, mas atenção, reconhecimento, um olhar que diga: “eu te vejo”.

Recusamos o incômodo de quem demanda nossa escuta ou nossa presença real: é o idoso que tenta puxar conversa na fila do mercado e é ignorado; é a amiga que liga só para desabafar, mas deixamos no “não atender” porque não queremos lidar com o peso da dor do outro; é o colega de trabalho que passa dias calado, sobrecarregado, isolado, e ninguém percebe ou pergunta se está tudo bem. Preferimos a previsibilidade de um boneco mudo, que não nos interpela, não nos exige e não nos desestabiliza.

E nessa lógica perversa, o boneco passa a ser preferido à pessoa real. Afinal, a sociedade do afeto artificial não quer a imprevisibilidade dos sentimentos humanos, mas a docilidade das coisas que compramos e descartamos quando quisermos.

Anthony Giddens fala do “relacionamento puro”, laços que só se mantêm enquanto houver satisfação mútua.

Mas o que isso significa num tempo em que a frustração virou sinônimo de abandono? Com o bebê reborn, não há reciprocidade possível: ele não sente, não reage, não confronta. É uma via de mão única, onde o afeto é depositado, mas nunca retornado. E, ainda assim, seguimos chamando isso de companhia.

Esse “relacionamento” com o boneco leva ao extremo a lógica da nossa época: vínculos unilaterais, sem negociação, sem conflito, sem reciprocidade. Cuidamos de bonecos, ignoramos pessoas, porque as pessoas falham, irritam, decepcionam. O boneco, não.

O reborn é, portanto, um espelho cruel das nossas escolhas: preferimos o conforto do afeto inanimado à complexidade do encontro humano. Enquanto dedicamos cuidado e atenção quase obsessivos a esses corpos de vinil, deixamos de olhar para o lado, para os seres humanos reais, imprevisíveis, cheios de falhas, mas vivos e precisando de nós.

Não é coincidência que essa busca por vínculos sem dor se torne tão popular num mundo onde os laços sociais estão cada vez mais frágeis e o encontro real, com seus desafios e contradições, é evitado a todo custo.

 

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