Por Daniel Teixeira
Estamos diante de mais um projeto de lei na Câmara Municipal que, a pretexto de proteger o consumidor, ameaça silenciar de vez a música e comprometer o sustento de quem vive dela. Falo da proposta que torna o couvert artístico opcional mesmo para quem assiste à apresentação ao vivo, tendo sido previamente avisado da cobrança, e ainda assim decidiu permanecer no ambiente do show. Uma regra que, na prática, inviabiliza o modelo de remuneração dos músicos em bares e restaurantes.
É a morte da arte por decreto. Quando a lei ignora a realidade, a realidade ignora a lei, já dizia Georges Ripert. E a realidade, aqui, é clara: se o pagamento deixar de ser obrigatório, o hábito se impõe — e ninguém mais pagará.
É como tentar construir uma casa substituindo o alicerce por mais paredes
Não por má-fé, mas por impulso. É da natureza humana: o que é opcional, tende a desaparecer. E com ele desaparece o artista, o som, o ofício. Ainda mais grave: trata-se de matéria de natureza civil, claramente fora da competência do Legislativo Municipal. A Câmara de Vereadores não pode legislar sobre obrigações contratuais entre particulares.
Mesmo assim, o projeto avança, como tantos outros no Brasil, impulsionado por boas intenções e má técnica. Vivemos um excesso de leis e uma carência de escuta. A cada legislatura, surgem dezenas de projetos apressados, que sequer passam pelo crivo da sociedade diretamente afetada.
No Brasil, legisla-se muito e debate-se pouco. É como tentar construir uma casa substituindo o alicerce por mais paredes. A Constituição já prevê a obrigatoriedade de audiências públicas em temas de interesse coletivo (art. 58, §2º), e o Estatuto das Cidades reforça essa diretriz. Mas a prática é outra: consulta-se depois, quando o estrago já está feito. A população é surpreendida por normas que regulam sua vida sem tê-la escutado.
Desde os tempos de Roma, sabíamos que a boa lei nasce do confronto de ideias em praça pública. A boa política nasce do dissenso, da escuta, da ponderação. Leis eficazes não brotam do gabinete — brotam do chão da cidade, do diálogo com quem vive o cotidiano que se quer regulamentar. Quando a norma não reflete a realidade, ela perde autoridade.
E a reação da sociedade vem. Não necessariamente como desobediência aberta, mas como distanciamento, descrédito e descumprimento prático. Leis que não dialogam com a vida viram letra morta. E letra morta não move cultura, não embala canções, não sustenta famílias. Se a intenção é proteger o consumidor, ótimo. Mas que esse cuidado alcance também o artista, o microempresário, o trabalhador da noite.
Porque o que está em jogo não é apenas um valor na conta — é o valor que damos ao trabalho artístico. À vida noturna. À liberdade de criar, cantar, tocar. Se querem mexer no couvert, que antes escutem quem faz da música sua esperança diária.
Quem transforma suor em melodia e sustento em som. Que chamem para a conversa quem carrega a cidade nas cordas do violão e nos pulmões do sopro. Se o cuidado é com o consumidor, que ele se estenda também ao artista — que não pode viver só de aplauso.
Antes de legislar, escutem. Antes de proibir, perguntem. Antes de calar, ouçam o que a alma da cidade ainda tenta cantar.