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Opinião Sexta-feira, 23 de Maio de 2025, 14:42 - A | A

23 de Maio de 2025, 14h:42 - A | A

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Quando a lei tenta alcançar o algoritmo

Talvez a verdadeira questão não seja controlar a tecnologia



A instalação da Comissão Especial na Câmara dos Deputados para debater o Projeto de Lei 2338/2023 marca um momento decisivo para o futuro digital brasileiro. Enquanto parlamentares se reúnem em Brasília para discutir como regular algo que evolui exponencialmente, uma pergunta paira no ar: como controlar aquilo que, por natureza, escapa aos olhos e à lógica linear – e frequentemente anacrônica – da lei?  

A inteligência artificial não espera. Enquanto debatemos sua regulação, ela avança a passos largos, transformando indústrias e redefinindo profissões. O ChatGPT alcançou 100 milhões de usuários em apenas dois meses, um ritmo de adoção jamais visto na história da tecnologia. Comparativamente, o telefone fixo levou 75 anos para atingir essa marca.  

O projeto em análise traz elementos fundamentais: centralidade da pessoa humana, proteção de direitos fundamentais e mecanismos de responsabilização. Contudo, a velocidade legislativa raramente acompanha a inovação tecnológica. Quando a lei finalmente entrar em vigor, os sistemas de IA já terão evoluído para formas que os legisladores sequer imaginaram durante os debates.  

Este é o desafio regulatório contemporâneo: como criar regras suficientemente flexíveis para acomodar inovações futuras, mas robustas o bastante para proteger valores fundamentais? A resposta pode estar não em regular a tecnologia em si, mas em estabelecer princípios inegociáveis que orientem seu desenvolvimento.  

O Brasil tem a oportunidade de posicionar-se como protagonista nesse debate global. Enquanto a União Europeia adota uma abordagem mais restritiva com seu AI Act e os Estados Unidos preferem uma regulação setorial, podemos encontrar um caminho intermediário que equilibre proteção e inovação. Nossa tradição jurídica, que já produziu marcos como o Código de Defesa do Consumidor e a LGPD, oferece um terreno fértil para essa construção.  

O Brasil tem a oportunidade de posicionar-se como protagonista nesse debate global.

A criação do Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial, prevista no projeto, representa um avanço significativo. Ao centralizar a governança na Autoridade Nacional de Proteção de Dados, reconhecemos a conexão intrínseca entre dados e inteligência artificial. Contudo, a efetividade desse sistema dependerá de recursos adequados e independência técnica.  

Particularmente sensível é a questão dos direitos autorais. Quando sistemas de IA são treinados com obras protegidas, quem deve ser remunerado? O projeto prevê princípios de razoabilidade, mas a implementação prática será um desafio monumental. Estamos redefinindo o conceito de criação intelectual em uma era onde máquinas podem gerar conteúdo indistinguível do humano.  

A classificação de sistemas de alto risco, como aqueles usados em recrutamento ou reconhecimento biométrico, também merece atenção especial. Decisões automatizadas nesses contextos podem perpetuar desigualdades históricas. O direito à explicação e à revisão humana é essencial para preservar a dignidade em um mundo cada vez mais algorítmico.  

Enquanto avançamos nesse debate, uma reflexão se impõe: estamos regulando a inteligência artificial porque tememos sua capacidade de nos superar ou porque reconhecemos que ela amplifica tanto nossas virtudes quanto nossos vícios? Talvez a verdadeira questão não seja controlar a tecnologia, mas decidir coletivamente que tipo de sociedade queremos construir com as ferramentas que criamos.  

E você, prefere uma IA estritamente controlada, mesmo que isso signifique menos inovação, ou está disposto a aceitar riscos em nome do progresso tecnológico? A resposta a essa pergunta definirá não apenas o futuro da regulação, mas o próprio contrato social da era digital.

Alexander Coelho - sócio da Godke Data Protection & Privacy e do escritório Godke Advogados. Especialista em Direito Digital e Proteção de Dados. Membro da Comissão de Privacidade e Proteção de Dados e Inteligência Artificial (IA) da OAB/São Paulo. Pós-graduado em Digital Services pela Faculdade de Direito de Lisboa (Portugal).

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