Reportagem
A Polícia Militar do Mato Grosso prendeu ao menos nove trabalhadores sem-terra, uma defensora pública e dois representantes da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na manhã de segunda-feira, 27. A ação ocorreu durante o despejo das 74 famílias que haviam ocupado, poucas horas antes, a fazenda Cinco Estrelas, na cidade de Novo Mundo, no norte do estado. Entre os detidos estão a defensora pública Gabriela Beck e o padre Luís Cláudio da Silva.
foto/ reprodução
Acampadas há 20 anos no entorno da fazenda à espera de regularização fundiária , as famílias do acampamento União Recanto Cinco Estrelas denunciam que a expulsão foi feita sem ordem judicial e foi feita com forte truculência policial. Os acampados relatam agressões, apreensão de celulares e revista policial feita por homens em mulheres.
Após a ação de ocupação, as famílias teriam sofrido violência por parte de jagunços do grileiro da área, que teriam tentado expulsar os trabalhadores com o uso de um trator. Já no início da tarde, a Patrulha Rural realizou a detenção de trabalhadores, da defensora pública e dos agentes pastorais que estariam no local para assegurar a integridade das famílias e mediar o conflito, uma vez que as mesmas relataram a situação de extrema violência em comunicado para a CPT Mato Grosso.
"Pelo apelo das famílias no comunicado, é possível perceber o temor frente ao histórico já conhecido da atuação truculenta da Patrulha Rural de Mato Grosso, e por isso a presença solidária dos agentes da CPT. Isso fica mais evidente quando, ainda no comunicado, as famílias destacam o receio de sofrerem mais violência, solicitando da pastoral o apoio e que as providências necessárias sejam tomadas com máxima urgência, a fim de resguardar nossas vidas e nossa integridade física", diz trecho da nota pública da Comissão
Os nomes dos nove detidos sem-terra ainda não foram divulgados.
As famílias estão debaixo de lona na beira das estradas" há 20 anos à espera da autorização judicial para que sejam assentadas em definitivo em parte das terras da fazenda. A área já foi destinada à reforma agrária por decisão da primeira instância da Justiça, em 2020, mas um suposto proprietário entrou com recursos, ainda não julgados em segunda instância. Imagens feitas pelas famílias antes da chegada da Polícia Militar mostram homens tentando invadir o local com trator, enquanto os acampados reagem expulsando o maquinário.
"O temor das famílias é grande devido ao histórico de violações de direitos e violências já vivenciadas, além de terem conhecimento da atuação da Patrulha Rural/Polícia Militar de MT", alerta a CPT em nota. Segundo a organização, a Patrulha Rural tem sido uma das principais precursoras da violência contra acampamentos e assentamentos no estado de Mato Grosso.
O delegado Geraldo Gezoni Filho informou que a delegacia da cidade de Guarantã do Norte, que também atende as ocorrências do município de Novo Mundo, ainda não recebeu detalhes sobre o caso e que ainda espera a realização de boletim de ocorrência, a ser aberto pela Polícia Militar. Disse, no entanto, que "no estado do Mato Grosso, não se tolera invasões".
De acordo com a CPT, as 74 famílias que fazem parte do campamento União Recanto Cinco Estrelas, sendo aproximadamente 200 pessoas das quais 50 são crianças, viveram por 20 anos debaixo de lona, na beira das estradas, em situação de extrema vulnerabilidade.
A área ocupada pelas famílias pertence à União, conforme sentença em Ação Reivindicatória que tramitou na Justiça Federal de Sinop, a qual reconhece a propriedade da área da Fazenda Cinco Estrelas, como sendo da União. Além disso, a sentença também antecipa tutela para que a autora seja imitida na posse de 2.000 hectares, área na qual, em abril do corrente ano, o Incra criou o Projeto de Desenvolvimento Sustentável Novo Mundo, conforme Portaria nº. 457/2024, de 10 de abril de 2024, com capacidade para assentar as 74 famílias.
Porém, uma decisão liminar em sede de mandado de segurança que tramita no TRF1, proferida em julho de 2021, impede a imissão da União na posse da área e, consequentemente, a implementação da política pública de reforma agrária. Desde a decisão liminar, não houve nenhuma nova deliberação no processo, mesmo com recurso interposto pela União e com diversos despachos realizados pelos mais diversos órgãos e entidades, com o relator do MS, que atualmente é o Desembargador João Carlos Mayer Soares.
O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), em conjunto com o Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH), emitiu a Recomendação ao TRF1 em setembro de 2023, do julgamento imediato do Mandado de Segurança. "Importante ressaltar que a ocupação se deu em menos da metade da área ocupada ilegalmente pelo grileiro, que, segundo a portaria de criação do PDS, assentará 74 famílias, mais de 200 pessoas, restando, ainda, o remanescente de aproximadamente 2.400 hectares, sob detenção do ocupante ilegal da área. Além disso, destaca-se que não há nenhuma decisão judicial para que se efetue eventual despejo das famílias", diz a CPT.
Região de Gleba Nhandú
Com cerca de 211 mil hectares, a região de Gleba Nhandú, no norte de Mato Grosso, engloba o Parque Estadual do Cristalino e diversas propriedades rurais. Algumas são terras invadidas por grileiros, que falsificaram documentos de posse ao longo de décadas.
Nos últimos anos, ao menos três fazendas localizadas na Gleba Nhandú foram atribuídas à União pela Justiça e, por isso, devem ser destinadas à reforma agrária. Entre elas, está a fazenda Cinco Estrelas. A segunda delas é a Fazenda Recanto, que teve cerca de 2 mil hectares destinados em 2018 à acomodação definitiva de famílias no Assentamento Nova Conquista.
A terceira é a Fazenda Araúna, que teve 6 mil hectares de sua área destinados, em 2024, ao assentamento Boa Esperança, composto por 100 famílias sem-terra.