José Vieira do Nascimento
Mato Grosso do Norte
Dra. Ana Paula Reveles Carvalho, Delegada Regional, iniciou seu trabalho na Delegacia de Polícia de Alta Floresta em 2007 e permaneceu no cargo até 2012, quando foi transferida para a Delegacia Especializada de Defesa da Mulher de Cuiabá onde permaneceu até 2015.
Neste ano, ela retornou à Alta Floresta, voltando a atuar na Delegacia de Polícia do município. Em fevereiro 2019, assumiu a Delegacia Regional de Alta Floresta, composta pelos municípios de Colíder, Nova Canaã do Norte, Carlinda, Alta Floresta, Paranaíta, Nova Monte Verde, Nova Bandeirantes e Apiacás.
Em entrevista concedida ao jornal Mato Grosso do Norte, em referência a campanha Agosto Lilás, ela discorre sobre um grave problema social, que é a violência contra a mulher.
Leia a entrevista
1 – Há 15 anos a Lei Maria da Penha vem garantindo segurança jurídica às mulheres que sofrem violência doméstica e familiar. No entanto, nos últimos anos, tem se registrado uma crescente nos casos de feminicídio e agressões contra as mulheres. Como a senhora vê esse cenário?
R: A violência contra a mulher sempre existiu em patamares assustadores, fruto de uma cultura patriarcal em que muitas vezes as mulheres eram tratadas com inferioridade e sem autonomia sobre suas vidas, seus corpos, suas ideias e aspirações. Infelizmente esse modo de pensar ainda é presente na nossa sociedade, o que tem fomentado muitas situações de violência, sobretudo os casos mais graves de agressão física e feminicídio. Com o advento da Lei Maria da Penha, que instituiu a possibilidade de prisão dos agressores e estabeleceu uma consequência jurídica mais severa no tocante aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, além da possibilidade de solicitar medidas de proteção, muitas mulheres se sentiram mais encorajadas a levarem as violências sofridas ao conhecimento das autoridades competentes. Antes da Lei Maria da Penha, a legislação era extremamente branda em relação aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, o que desmotivava as denúncias, gerando muita impunidade e descrença às vítimas. Apesar da subnotificação que ainda existe, ela é menor do que aquela que havia antes da criação da Lei Maria da Penha. Nesse contexto, acredito que a violência contra a mulher sempre ocorreu em grande escala, o que aumentou foram as comunicações formais desses crimes.
2 – Temos muitos casos de violência que envolvem pessoas famosas, como o DJ que agrediu a esposa e até autoridades, como aconteceu recentemente com o vice-governador de Mato Grosso, que tiveram grande repercussão. A senhora acha que estes casos acabam influenciando outras pessoas a terem este mesmo comportamento?
R: Os casos que você citou demonstra que a violência doméstica e familiar contra a mulher está presente em todas as classes sociais, independentemente do grau de escolaridade. Acredito que os agressores agem por naturalizarem esse tipo de comportamento agressivo contra as mulheres, não por influência de outros casos. Muitos, inclusive, culpam as próprias vítimas pelos seus atos de violência, como se não tivessem a compreensão da ilicitude e gravidade de sua conduta, buscando uma “justificativa” para esse tipo de agressão com o intuito de mitigar sua responsabilidade. E isso é inaceitável. Durante a pandemia, muito se falou sobre o aumento dos casos de violência contra a mulher em razão do isolamento social a que todos foram submetidos, mas acredito que essas agressões só ocorreram nos lares onde o ciclo de violência já existia, nas famílias onde já havia agressões morais e psicológicas, muitas vezes não notificadas, e que evoluíram para agressões físicas. Nos lares de convivência saudável e respeito mútuo isso não tende a acontecer, mesmo diante dos casos de repercussão que ocorrem diariamente no país.
Sabemos que o medo, a vergonha e o constrangimento muitas vezes levam as mulheres a não comunicarem as agressões sofridas
3 – Em Mato Grosso, segundo relatório da Secretaria de Estado de Segurança Pública (SESP), 74% dos feminicídios ocorreram dentro das casas das próprias vítimas. As forças de segurança pública teriam como, através da estrutura e ferramentas disponíveis, pelo menos diminuir esse índice, evitando que alguns desses crimes não sejam executados?
R: As forças de segurança têm buscado aprimorar seus modos de atuação para melhor atender as vítimas, prender os agressores e tornar as investigações cada vez mais eficientes e céleres. Algumas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher foram criadas e nos municípios onde não há essa unidade especializada foram instituídos núcleos de atendimento à mulher, que atuam em parceria com outros profissionais, como assistentes sociais e psicólogos, a fim de melhor acolher as vítimas e protegê-las. Sobre os feminicídios que poderiam ser evitados, seria necessário analisar caso a caso. Em alguns casos é possível que a vítima tenha solicitado medidas protetivas de urgência e que tal providência não tenha sido o suficiente para protegê-la, mas há outros casos em que a vítima ainda não havia comunicado as agressões anteriormente sofridas às autoridades competentes. Daí a importância de toda a sociedade se envolver, pois geralmente a mulher passa por um ciclo de violência que começa com as humilhações, ofensas e demonstrações de posse, progredindo para as ameaças e agressões físicas. Todas essas fases de progressão da violência geralmente são percebidas por pessoas próximas às vítimas, como familiares, amigos e colegas de trabalho, os quais podem (e devem) comunicar suas percepções, ainda que de forma anônima, à Delegacia de Polícia, à Polícia Militar ou ao “Ligue 180”, que é um serviço de utilidade pública essencial para o enfrentamento à violência contra a mulher. Este serviço recebe as denúncias de violações contra as mulheres, encaminha o conteúdo dos relatos aos órgãos competentes e monitora o andamento dos casos. Muitas vezes a mulher ainda não se sente fortalecida o suficiente para denunciar o agressor, o que se dá por vários fatores, como dependência emocional, dependência financeira, chantagem, intimidação e medo das consequências da denúncia. Diante desse cenário, as pessoas próximas às vítimas ou aquelas que tenham tido conhecimento da agressão podem agir por ela.
Recentemente a Polícia Civil, em parceria com o Poder Judiciário e a Secretaria de Segurança Pública, criou o site sosmulher.pjc.mt.gov.br, pelo qual pode ser solicitada a medida protetiva de urgência on line sem a necessidade da mulher se deslocar até uma Delegacia de Polícia.
A Polícia Militar também criou o projeto “Patrulha Maria da Penha” com o objetivo de prestar apoio às mulheres que sofreram violência e estão sob medidas protetivas de urgência, realizando rondas com esse enfoque.
Entendo que a diminuição dos índices de violência contra a mulher, sobretudo considerando o feminicídio, depende da junção de esforços de todos, tanto do poder público quanto de toda a sociedade. É necessário fortalecer as políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher, como as campanhas de conscientização para que a sociedade, não só as vítimas, entenda a importância de denunciar os agressores e assim possibilitar a atuação dos órgãos competentes. Também é de extrema relevância a criação de casas de amparo, destinadas ao acolhimento provisório das vítimas em situações extremas.
4 – Neste mês, tem a campanha “Agosto Lilás”, de conscientização do enfrentamento à violência doméstica. Qual a orientação da senhora para a mulher que sofre violência de seus parceiros?
R: Não desconsiderem nenhum ato de violência, pois ele é progressivo. Se aceitarmos o primeiro ato, a tendência é que ele aumente e se potencialize. Geralmente a primeira fase do ciclo de violência começa com as humilhações e ofensas. Posteriormente virão os atos de explosão, ou seja, a falta de controle chega ao limite e leva ao ato violento materializado em agressões psicológicas, morais, patrimoniais, sexuais ou físicas. Em seguida vem a fase do arrependimento, em que o agressor demonstra a intenção de mudar o seu comportamento agressivo para se reconciliar com a vítima, a qual costuma ceder por acreditar genuinamente nessa mudança. Por um período o agressor se mantém calmo, mas com o tempo a tensão novamente aumenta e voltam as agressões da primeira fase. É preciso romper esse ciclo de violência e denunciar as agressões. Sabemos que o medo, a vergonha e o constrangimento muitas vezes levam as mulheres a não comunicarem as agressões sofridas, por isso é importante que elas se fortaleçam nesse sentido, buscando, se necessário, o acompanhamento da equipe multidisciplinar formada por psicólogos e assistentes sociais do município, a fim de que se sintam seguras o suficiente para tomarem essa decisão. É um processo longo, doloroso e difícil, mas extremamente necessário para se evitar consequências mais gravosas.
5 – Como a senhora vê a violência contra a mulher em Alta Floresta e cidades adjacentes?
R: A violência contra a mulher na região de Alta Floresta é muito alta, assim como nas demais cidades do estado, infelizmente. Durante a pandemia, diminuíram os registros de Boletim de Ocorrência em razão da dificuldade de as mulheres se deslocarem até a Delegacia de Polícia, já que muitas estavam cumprindo as restrições sanitárias na companhia de seus agressores, porém aumentaram os casos de flagrante delito. Como já mencionado, nas casas onde já existia o ciclo de violência as explosões passaram a ocorrer com mais frequência durante o período de isolamento social, fazendo com que aumentasse o número de agressões e situações que redundassem em prisões em flagrante.
6 – A senhora considera importante Alta Floresta ter uma Delegacia Especializada para atender as mulheres vítimas de violência?
R: Acho extremamente importante e há muito tempo buscamos a implantação dessa unidade especializada em Alta Floresta. A Polícia Civil objetiva criar uma Delegacia exclusiva para os casos envolvendo violência contra a mulher, crianças, adolescentes e idosos, grupo de vulneráveis que necessita de um atendimento diferenciado e prioritário. Atualmente, os atendimentos às mulheres vítimas de violência são realizados na Delegacia de Polícia de Alta Floresta por meio do Núcleo de Atendimento às Mulheres já existente, que é formado por uma escrivã e investigadores de polícia que atuam exclusivamente nessa área, além do Delegado e demais policiais plantonistas, que também dão o suporte necessário aos atendimentos. A equipe especializada conta com o apoio de assistentes sociais e psicólogos do município, quando o caso requer, e tem buscado aprimorar cada vez mais o atendimento prestado às mulheres vítimas de violência.
7 – Qual o papel da sociedade diante deste grave problema que é a violência doméstica contra a mulher?
R: A sociedade tem um papel fundamental no enfrentamento à violência contra a mulher, uma vez que muitos ainda naturalizam as agressões contra as mulheres e sequer percebem que no cotidiano, em pequenos atos, elas são vítimas de violência. É fundamental que haja uma mudança cultural e que os pais eduquem seus filhos, meninos e meninas, ensinando a igualdade entre homens e mulheres e ressaltando que todos merecem e devem respeito entre si. Também é imprescindível que não haja tolerância com os atos de violência contra as mulheres e que todos se comprometam com essa causa