Dionéia Martins/Mato Grosso do Norte
Em um mês marcado pela luta contra a violência de gênero, o palco do Teatro Agostinho Bizinoto se transformou em espaço de denúncia, emoção e esperança. Na última quinta-feira (21), a peça "Re-Cortes", da companhia cuiabana Cia Vostraz, foi apresentada em três sessões para estudantes de escolas públicas municipais e estaduais. Mais do que um espetáculo, a encenação trouxe à tona o grito sufocado de tantas mulheres vítimas de violência doméstica.
A iniciativa integra as ações do Agosto Lilás, mês dedicado à conscientização pelo fim da violência contra a mulher, e foi viabilizada com do recursos Conselho Municipal de Segurança Pública de Alta Floresta (COMSEP/AF) em parceria com do Promotoria Pública, o Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, Prefeitura Municipal e outras instituições locais. O objetivo: formar multiplicadores do diálogo, capazes de levar a discussão para dentro de suas casas, suas escolas e seus círculos sociais.
A arte que transforma
Dirigida e protagonizada por Fernanda Costa, que também é produtora da peça, "Re-Cortes" é mais que teatro — é autobiografia. No palco, ela interpreta Marina, uma mulher marcada pela dor da violência, mas também pela força de reconstruir sua vida.
"Eu nunca imaginei que teria a oportunidade de contar a minha história para outras pessoas", compartilhou a atriz ao final da apresentação. "O que eu faço hoje com essa peça é mostrar que sim, existe um futuro. Hoje pode não fazer sentido, mas amanhã faz. É preciso não desistir."
A emoção da plateia, composta majoritariamente por jovens, era visível. Muitos se emocionaram, choraram e refletiram. "É uma peça que toca, que provoca. E é isso que a gente precisa: provocar a reflexão", disse a vereadora Elisa Gomes, responsável por articular a vinda da peça a Alta Floresta. “Enquanto nós não mudarmos essa realidade, essa é uma pauta de resistência”, completou.
Números que preocupam
O promotor de Justiça Guilherme da Costa destacou a gravidade do problema no município: 37% dos processos criminais em Alta Floresta estão relacionados à violência doméstica ou contra a mulher.
"É um número muito alto, e isso mostra que o agressor não afeta apenas a vítima. Ele compromete todo o sistema de segurança pública", afirmou. O promotor também ressaltou que a violência doméstica retira o efetivo das ruas, porque policiais precisam acompanhar e proteger mulheres ameaçadas — o que evidencia o impacto coletivo do problema.
Por outro lado, ele celebrou avanços recentes, como a obrigatoriedade da participação de agressores em palestras educativas sobre medidas

protetivas. "No primeiro semestre, 65 participaram. Apenas um voltou a descumprir a medida. Isso mostra que ações educativas têm um impacto direto na prevenção", avaliou.
Justiça e sensibilização
Também presente no evento, o juiz criminal Tibério de Lucena Batista ressaltou o papel da Justiça nesse cenário. "Infelizmente, a violência chega até nós quando tudo já aconteceu. E então, precisamos agir, mesmo que não queiramos. Alguém tem que assumir a responsabilidade", disse. Para ele, iniciativas como a peça são essenciais para interromper o ciclo antes que ele chegue ao Judiciário.
A atriz Fernanda Costa reforçou essa ideia com força e emoção. Sobrevivente da violência, ela lembrou a importância da rede de apoio e de pequenas atitudes de atenção no cotidiano. "Não é só uma briguinha de casal. Às vezes, você está vendo uma discussão e acha que é coisa deles... e no dia seguinte, pode ter acontecido uma tragédia", alertou.
Fernanda compartilhou que o que a salvou foi seu filho. “Foi ele quem me motivou a continuar, me encorajou a viver. Quando a gente está nesse lugar de dor, precisa de alguém para lembrar que vale a pena”.
Formação de multiplicadores
A presença dos estudantes foi uma escolha estratégica. Segundo a vereadora Elisa, ao assistir à peça, esses jovens se tornam agentes de transformação. "É fundamental que esse debate chegue às escolas, às rodas de conversa, às famílias. É assim que vamos construir lares mais estruturados no futuro", disse.
Ela concluiu emocionada: “Chorei três vezes hoje. E vi que muitos jovens também choraram. Isso mostra que tocou, que mexeu. E como eu disse, eu quero viver para ver o dia em que possamos olhar para trás e dizer: ‘um dia existiu violência contra a mulher’. Porque isso não é justo com as mulheres, não é justo com as famílias”.
Uma pauta de todos nós

O espetáculo "Re-Cortes" não foi apenas uma atividade do Agosto Lilás em Alta Floresta. Foi um chamado. Um convite para olhar de frente uma realidade dolorosa — mas que pode ser transformada com empatia, diálogo e coragem.
Enquanto houver silêncio, haverá violência. Mas quando a arte ocupa o palco, a consciência encontra voz. E, como disse Fernanda Costa, "hoje pode não fazer sentido, mas amanhã faz".