Marcelo Figueiredo
É comum ouvirmos que decisão judicial não se discute, cumpre-se. É uma verdade sobretudo para as partes envolvidas na demanda. Mas esse ditado não pode ser levado em conta quando estamos discutindo o Direito na academia, por exemplo. É dever dos professores instigarem seus alunos trazendo aspectos positivos e negativos de toda decisão judicial ou ainda procurando demonstrar os pontos fortes e fracos desenvolvidos pelo juiz.
Aliás, diga-se, desde logo, que embora a jurisprudência tenha seu lugar nos estudos jurídicos, ela, ao menos nos sistemas oriundos do direito romano, como é o nosso caso, nunca teve grande importância, ao contrário do que ocorre na família da Common Law.
Desde que o caso “Bolsonaro” foi julgado no STF, o tema pegou fogo em toda a sociedade e evidentemente com maior razão no mundo jurídico. Chama a atenção, inicialmente, a profunda diferença de compreensão, de visão dos fatos, se compararmos o voto do Relator e da maioria, de um lado, e o voto divergente de outro.
Para a maioria, não resta a menor dúvida que o ex-Presidente - e parte do seu núcleo duro - arquitetou, instigou ou até incentivou a prática de um Golpe de Estado ou algo parecido, um “atentado ao Estado Democrático de Direito” como diz a lei. Já para a divergência, (voto do Min. Luiz Fux), nada disso ocorreu.
O leigo deve ficar atônito diante desse quadro. Como é possível que juízes tenham compreensões tão diferentes diante dos mesmos fatos. Já para a comunidade jurídica não há nisso, em princípio, nada de novo.
Talvez uma forma de explicar as diferentes compreensões dos fatos esteja radicada na teoria das emoções. Cada magistrado ou magistrada, ao ler os autos do processo, ao ouvir as testemunhas, vai formando uma convicção na sua mente e com ela vai crescendo a culpabilidade ou a inocência do acusado até que, em certo momento, mesmo antes da coleta de toda a prova, já há um juízo definitivo sobre o que ocorreu, mesmo que essa fotografia não corresponda exatamente aos fatos.
O Brasil abriu centenas de exceções em nome de uma blindagem geral. Toda autoridade de qualquer escalão da República pleiteia e consegue algum tratamento especial
Essa é a forma de construir paulatinamente as decisões do ponto de vista subjetivo. Afinal os juízes são humanos e não máquinas.
E, sim, é verdade que a Justiça e seus juízes devem ser “neutros”, “imparciais” o quanto possível, objetivos, baseando suas decisões em provas, fundamentando e motivando suas decisões, sim tudo isso é correto, mas nem sempre as coisas se passam como a teoria apregoa. Isso talvez explique a visão tão diferente dos magistrados durante o julgamento.
Pessoalmente, me chamou a atenção alguns pontos. Sempre fui um crítico do foro privilegiado. Aliás, com o tempo firmei convicção que ele só se justificaria em casos muito excepcionais. Não me convence a tradicional defesa dos Tribunais em nome de maior distância do fato e o prestígio da autoridade de outro lado.
O Brasil abriu centenas de exceções em nome de uma blindagem geral. Toda autoridade de qualquer escalão da República pleiteia e consegue algum tratamento especial. É absurdo o número de pessoas hoje com foro privilegiado no Brasil. Nada justifica isso. Só a cultura patrimonialista e a visão distorcida de como devem ser as regras em uma democracia.
É sintomático que nas maiores democracias do mundo o foro privilegiado é uma exceção excepcionalíssima. Ex- Presidentes não têm foro privilegiado em nenhuma democracia forte.
Pois bem. No polêmico caso recém julgado também acompanho a divergência. Creio que o julgamento deveria ocorrer em primeira instância. Não discuto as idas e vindas da jurisprudência do STF, só lamento que elas ocorram com muita frequência e sem consistência argumentativa.
O voto do Ministro Fux, a meu ver, tem pontos fortes e fracos. Como pontos fortes destaco a matéria processual. Aliás não poderia ser diferente. Ele é professor de processo e sempre se destacou na área. Há sem dúvida fortes inconsistências e violações ao devido processo legal, suspeições e impedimentos não declarados, prazos exíguos para a defesa manifestar-se sobre milhares de documentos etc.
Isso parece correto e salta a vista de qualquer observador e estudioso do Direito. Não é preciso ser advogado de defesa dos réus para notar tais fatos e as nulidades ocorridas a partir de toda essa situação, ainda que não reconhecidas pelo Tribunal.
Por outro lado, como ponto fraco, vamos dizer assim, do voto divergente - ao menos no aspecto lógico-jurídico - diz respeito a decisão de condenar o colaborador (o ajudante de ordens) e inocentar o Ex-Presidente. É difícil acreditar que o ajudante de ordens tramou um Golpe de Estado e o seu Chefe ficou fora disso.
Já os votos majoritários parecem seguir a lógica do Relator que vislumbrou uma organização criminosa, um plano de destruição do Estado Democrático de Direito, e um atentado a autoridades constituídas. O Direito, infeliz ou felizmente, permite que os julgadores tenham tão díspares concepções. Quem tem razão? Cada um prioriza o que entende ser mais relevante e assim constrói suas próprias convicções, certas ou erradas.
Marcelo Figueiredo - advogado, consultor jurídico e Professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da PUC-SP